Em cada dez brasileiras negras, oito conhecem pouco sobre a Lei Maria da Penha (Lei nÂș 11.340/2006), o principal mecanismo legal de proteção Ă s mulheres no Brasil. Uma porcentagem semelhante, de 70%, diz que nĂŁo sabe tanto sobre as medidas protetivas que as mulheres podem solicitar Ă Justiça para manter seus agressores longe.
Os dados sĂŁo da Pesquisa Nacional de ViolĂȘncia contra a Mulher Negra, feita pelo DataSenado e pela Nexus – Pesquisa e InteligĂȘncia de Dados, em parceria com o ObservatĂłrio da Mulher contra a ViolĂȘncia. O levantamento, divulgado nesta segunda-feira (2), constitui a maior pesquisa de opiniĂŁo sobre o tema no paĂs, abrangendo 13.977 participantes pretas e pardas com 16 anos de idade ou mais.Â
As entrevistas foram feitas por telefone, no perĂodo de 21 de agosto a 25 de setembro de 2023.Â
As mulheres negras sĂŁo as principais vĂtimas da violĂȘncia de gĂȘnero, conforme destacam pesquisas complementares, como as do FĂłrum Brasileiro de Segurança PĂșblica (FBSP).
A parcela de mulheres negras que diz desconhecer totalmente a Lei Maria da Penha é de 8%, contra 22% que declaram conhecer muito da legislação. Ainda em relação às medidas protetivas, a mesma proporção de mulheres afirma conhecer muito do assunto ou não conhecer nada.
Ceticismo
O levantamento também revela o ceticismo quanto à efetividade da legislação vigente. Na avaliação de metade (49%) das mulheres negras, a Lei Maria da Penha protege as mulheres apenas de modo parcial. Um terço (30%) acredita que a lei as protege e um quinto (20%) que não tem efeito pråtico.
Karla (nome fictĂcio para preservar a identidade da entrevistada) faz parte do grupo de mulheres negras que acreditam que a Lei Maria da Penha funciona apenas no papel. Essa percepção advĂ©m de experiĂȘncia prĂłpria. Mesmo tendo sofrido inĂșmeras agressĂ”es de seu ex-companheiro e tendo provas e testemunhas a seu favor, ela nĂŁo conseguiu uma medida protetiva severa o suficiente para proteger a si e a seus filhos. Uma de suas filhas foi, inclusive, abusada sexualmente pelo ex-parceiro que, desse modo, perpetrou todos os tipos de violĂȘncia contra a mulher – sexual, fĂsica, patrimonial, psicolĂłgica e moral – dentro da famĂlia de Karla.Â
Ela fez boletim de ocorrĂȘncia 18 vezes e chegou a esperar por atendimento, em uma delegacia, por 12 horas, oportunidade em que um agente minimizou a ida dela Ă polĂcia, quando teve o braço quebrado pelo ex-marido e desejava registrar a violĂȘncia sofrida.
Karla disse que obteve medida protetiva apenas uma vez. Na ocasiĂŁo, ficou estabelecido que o ex-companheiro tinha que manter uma distĂąncia mĂnima de 600 metros dela, o que ele descumpria, na ausĂȘncia de policiais, e voltava a respeitar assim que a viatura chegava, Ă s vezes, 2 horas depois de Karla acionar os agentes.Â
Assim como as autoridades do Poder Judiciårio, os policiais não inspiravam confiança, pois afirmavam que só poderiam prender o agressor se estivesse na mesma rua que ela, sendo que, em vårias ocasiÔes, ele estava bastante próximo, distante a uma quadra.
“O juiz dizia que tirar foto de arma e falar nĂŁo Ă© o mesmo que fazer. A foto nĂŁo era encarada como algo tĂŁo grave quanto ele aparecer e fazer [consumar] o crime”, disse sobre os argumentos de um juiz para indeferir seu pedido de medida protetiva. Karla tambĂ©m ouviu de um magistrado que o que havia acontecido era “um acidente”.
De 2020 a 2023, a Justiça brasileira emitiu 1.443.370 decisĂ”es sobre medida protetiva no contexto da Lei Maria da Penha. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a maioria, ou 71,87%, foi concedida integralmente, mas 8,47% delas (122.192) deixaram de contemplar algum aspecto que poderia garantir o bem-estar das mulheres e contribuir para o rompimento do ciclo de agressĂ”es. AlĂ©m disso, 6,8% (98.116) foram indeferidas.Â
A concessĂŁo de medidas protetivas parciais pode dificultar a quebra do ciclo de violĂȘncia, segundo especialistas.
Karla soube mais sobre a Lei Maria da Penha por meio de uma psicóloga que atuava em uma delegacia especializada no atendimento à mulher. Até então, tinha apenas ouvido falar na lei, sem saber como funcionava exatamente.
Diante de tudo que enfrentou, apesar de ter conhecido mais sobre a lei, Karla guardou lembranças de como as autoridades tentaram fazĂȘ-la desistir de prestar queixa. Denunciar seu agressor e fazĂȘ-lo pagar pelas violĂȘncias parecia tarefa impossĂvel, muitas vezes diante da insensibilidade e grosseria de policiais, tanto do gĂȘnero masculino como do feminino.Â
“SĂł ofereceram a opção de eu fugir. [Insinuavam que] Eu era a culpada. A gente Ă© que tem que sair do nosso local de moradia, abandonar tudo, para a pessoa [o agressor] continuar sua vida [normalmente]”, desabafa, decepcionada com as falhas na aplicação da lei.
Rede de atendimento
A pesquisa elaborada pelo DataSenado e pela Nexus aponta que 95% das entrevistadas afirmaram conhecer a Delegacia da Mulher, especializada no atendimento a vĂtimas desses tipos de crimes. Os serviços de AssistĂȘncia Social, como os centros de ReferĂȘncia de AssistĂȘncia Social (Cras) e centros de ReferĂȘncia Especializado de AssistĂȘncia Social (Creas), que tambĂ©m prestam esse tipo de serviço, sĂŁo conhecidos por 90% das participantes do levantamento.Â
A Defensoria PĂșblica Ă© conhecida por 88% das mulheres negras e o Ligue 180, canal de denĂșncias para esse tipo de agressĂŁo, por 79%. A Casa Abrigo, que acolhe mulheres e crianças vĂtimas de violĂȘncia domĂ©stica, Ă© conhecida por 57% das brasileiras pretas e pardas.Â
JĂĄ a Casa da Mulher Brasileira, que reĂșne diversos serviços voltados para vĂtimas desses tipos de delitos, Ă© o equipamento menos popular, conhecido por 38% das respondentes. Atualmente, hĂĄ dez unidades espalhadas pelo paĂs – Campo Grande; Fortaleza; CeilĂąndia (DF); Curitiba; SĂŁo LuĂs; Boa Vista; SĂŁo Paulo; Salvador; Teresina; e Ananindeua (PA).